terça-feira, 22 de julho de 2008

O CINEMA É UM SÓ II


DE QUE SERVE TEORIAS PARA O DOCUMENTÁRIO? (**)
Sergio Santeiro santeiro@vm.uff.br

Andando na rua, o real pulando na sua frente como um gêiser: “me filma, me filma”... e passa. Passou-se já era não dá pra cortar pra contra campo, plano de cobertura e outros quebra-galhos. O que fazer com a câmera na hora, que teoria vai dizer.

Mas as teorias, as reflexões, são importantes não para explicar, mas para buscar entender o porquê dos barcos movimento. Não tenho como não lembrar-me de minha querida quase amiga Ana Cristina César (1), poetisa esquisita, aguda e ferina a implicar comigo em seu livro "Literatura não é Documento”: a literatura é imanente, não existe em outra forma de expressão.

Fico meio implicado, fui um quase literato que migrou para um quase cinema: gosto do cinema como documentário, mas ela tinha razão, o documentário não quer ser senão a boca da tela a sorver o gosto de romances, poemas e estórias, tomar a literatura como antecedente, anterior, referencia a situar-nos no mundo que não cabe em lugar nenhum nem na tela e nem no papel.

A minha geração teve uma trindade de cineastas natos, e não sou em desmerecer ninguém, muito menos eu: Júlio (2), Rogério (3) e Neville (4) dão-me a impressão de pensar em cinemês, sem pré-formações literárias apesar de Rogério antes de filmar já ter se destacado na crítica de cinema, mais cinema que crítica, como alguns de nossos mestres. Não os vi pensar em documentário embora sejam seus filmes, como muitos, verdadeiros documentários de sua contemporaneidade. Mas pra continuar precisamos fazer um trato: não falemos aqui nunca mais em ficção que é medida unidimensional da fantasia individual.

Paulo Emílio (5) em sua sagesse referia-se a filmes posados e filmes naturais. Tenho pra mim que não era nada apreciador dos naturais, o que gostava era do posado. E Flaherty (6), Cavalcanti (7) o que fizeram era reconstituir em posado o que sua observação visual ou intelectual observava na realidade.

Poderemos falar de Eisenstein (8) e seu cinema imperial posado que se agigantou na propaganda do estado a arrastar na miséria o Vertov (9) a realidade ao natural transfigurada pelo “cineôlho” na apreensão do cotidiano na comunidade socialista construindo-se, era o documentário. Posado ou natural, os dois braços da câmera na cabeça, as duas faces da moeda, e existe uma moeda de uma só face? Dizemos que uma é cara, a outra é coroa, ambas nobres como a missão de carregar o cinema nas costas como um tripé. O que é uma e o que é outra. E agora temos o nosso querido Coutinho a brincar como se a conhecesse com a minha dramaturgia natural.

A questão fundamental é a de como lidar com a realidade externa para que ela não exploda como a bolinha de sabão.

Grande e fundamental momento a transfiguração de dona Elisabeth (10) na manhã de depois que foi filmada e viu-se, devolveu-se a sua personalidade clandestinizada pela tragédia incessante que como soube nem depois cessou. E fêz Coutinho como se deve fazer e cobra brilhantemente Jean Claude (11) tem-se que devolver ao seu dono a imagem apreendida no filme.

Os primitivos e os árabes ao que saiba sentem sua alma aprisionada pela imagem quando se os retrata. Devem ter razão. Antes de mais nada é preciso concordar: todos têm sua razão. Não adianta ficar disputando razões. Quando a vida fica por um fio, as razões enlouquecem. E nós, documentaristas de escola, não podemos ficar presos na armadilha de que o que devemos é moldar as realidades a nossa imagem. Melhor moldarmo-nos nós que é como se faz o melhor cinema, posado ou natural.

No momento em que escrevo quanta coisa não queríamos ter filmado. Não importa, podemos recriar no posado contanto que não lhe imponhamos nossas fantasias. Saber ver, saber acompanhar, saber filmar como a maravilha preciosa de Humberto Mauro, o "João de Barro", que recorta e recompõe o ninho para filmá-lo dentro. E ao fim oferece o espetáculo nunca visto de um arranha-céu de ninhos de barro, uns sobre os outros como um prédio de apartamentos.

Qual fantasia previu semelhante imagem. Não queiramos que o cinema natural ou posado seja o que queremos que seja o que é e como é. E as teorias que corram atrás querendo entendê-los e não explicá-los.
Assim seja.


(*) V. Mayakovsky, 1918. Cartaz filme: “Acorrentada pelo filme”.

(**) Originalmente postado no dia 02 de novembro de 2007, às 19h40:

CINEMABRASIL - Lista debatendo Técnica, Linguagem, Mercado do Cinema Brasileiro cinemabrasil@cinemabrasil.org.br

(1) “Literatura não é Documento”, de Ana Cristina César (1952-1983), MEC / Funarte, RJ, 1980. Uma pesquisa sobre documentário e literatura no cinema.
(2) Julio Bressane, Rogério Sganzerla (1946-2003) e Neville D’Almeida.
(3) Paulo Emilio Salles Gomes (1915-1977)
(4) Robert Flaherty (1884-1951)
(5) Alberto Cavalcanti (1897-1982).
(6) Sergei Eisenstein (1898-1948).
(7) Dziga Vertov (1895-1954). Pioneiro do “cinema militante, adepto da estética de desconstrução”, ele acreditava que o realismo cinematográfico é uma ilusão.
(8) Elizabeth Teixeira. É a personagem real do filme de Eduardo Coutinho “Cabra Marcado Para Morrer” (1984), esposa de João Pedro, líder camponês assassinado em 1962. As filmagens deste documentário foram interrompidas pelo golpe Militar de 1964, e D. Elizabeth e os seus filmes somem na clandestinidade. Coutinho retoma as filmagens em 1982 e realize aquilo que a personagem mais sonhava: reencontrar a família.
(9) Jean Claude Bernardet

sexta-feira, 11 de julho de 2008

O CINEMA É UM SÓ












REFLEXÕES SOBRE O DOCUMENTAL E O FICCIONAL (*)

Sergio Santeiro santeiro@vm.uff.br


Acho que não se devia falar de cinema documentário. O cinema é um só: associação de sons e imagens em movimento. O cinema sempre foi sonoro: o frêmito da platéia acompanhando as emoções suscitadas pela sucessão de imagens cujo ordenamento significa significados, e acompanhadas ao piano, e muitas vezes com dramatização por trás da tela.

A fundamental contribuição do cinema é o movimento ou a ilusão de movimento. O registro fotográfico acelerado como nas folhas dos bloquinhos de animação gera a impressão de realidade que só pode, é claro, nos remeter à realidade exterior a nossa volta e à realidade interior dentro de cada um de nós. E assim num continuo entre o exterior e o interior, o documental tende a refletir o exterior enquanto o ficcional tende a refletir o interior.

Quanto menor a interferência do autor é mais documental, quanto maior é mais ficcional. Porque o documental tem que dar conta das imagens que recolhe, descobrir-lhes o nexo do sentido e apresentar. Já o ficcional precisa dar conta das imagens que cria e representá-las em função do nexo de sentido que imaginou.

O ficcional é a criação do desejo estético, o documental é sua descoberta no entorno. O ficcional escreve com o olhar, o documental descreve. E tudo é cinema. Podemos sim falar de cinema documentário no sentido do conjunto dos filmes documentais. Mas, precisamos sobretudo falar da singularidade que é cada filme documental ou ficcional. E isto é que é arte. Sacar a singularidade, presente em cada um de nós que somos singularidades na multidão. E é daí que o filme emociona o publico.

Tanto faz numa ou noutra forma, numa e em outra medida, mais, menos. Os filmes de sucesso só o são porque foram mais oferecidos aos públicos, ou mais espertamente. Sucessos de hoje podem não ser nada mês que vem fracassos podem acumular sucessos ao longo de cem ou duzentos anos de presença. É ruim, é nefasto insistir nesses torneios medievais de melhores: de um lado o preferido da coroa e do outro o misterioso cavaleiro negro.

Acho que o cinema tende mais para o esporte coletivo como o futebol, por exemplo. O conjunto é um time que pode ter craques em todas as posições, mas que só dá certo quando a regra é clara: quem pede recebe, quem se desloca tem preferência. E o objetivo é o gol quando todo o time comemora e seus torcedores tambem. Não é nessas arapucas de ego em que nós, só nós, que somos penta, perdemos o jogo em casa disputando embaixadinha na nossa pequena área.

Estamos sofrendo uma inacreditável invasão audiovisual como na Guerra dos Mundos. E vem pela rede, pelas tevês, pelas multisalas enquanto reprimimos uma multidão de imagens nativas que só elas podem-nos revelar a imagem de quem somos. Externamente como no documental e internamente como no ficcional.



(*) Originalmente postado em CINEMABRASIL - Lista debatendo Técnica, Linguagem, Mercado do Cinema Brasileiro, no dia 09 de julho de 2008, às 13:56.

PS. Aurélio Michiles: Alguns filmes que provocaram e repercutiram um outro olhar sobre o fazer audiovisual:


(1) O Homem da Câmera (Chelovek s Kinoapparatom), Rússia, 1929, p&b, mudo, 80 min.
Dir. Dziga Vertov


(2) IRACEMA, Uma transa amazônica, Brasil/Alemanha, 1974, cor, 90 min.
Dir. Jorge Bodansky e Orlando Sena.


(3) História do Vento (Une Historie de Vent) França, 1988, cor, 80 min.
Dir. e Rot. Joris Ivens e Marceline Loridan


(4) Verdades e Mentiras (F For Fake, 1973), França, cor, 86 minutos.
Dir. Orson Welles. Rot. Orson Welles e Oja Palinkas.

"Livre-pensar é só pensar" Millor Fernandes

www.tudoporamoraocinema.com.br

Minha foto
Nasceu em Manaus-AM. Cursou o Instituto de Artes e Arquitetura-UnB(73). Artes Cênicas - Parque Lage,RJ(77/78). Trabalha há mais de vinte anos em projetos autorais,dirigindo filmes documentários:"SEGREDOS DO PUTUMAYO" 2020 (em processo); "Tudo Por Amor Ao Cinema" (2014),"O Cineasta da Selva"(97),"Via Látex, brasiliensis"(2013), "Encontro dos Sabores-no Rio Negro"(08),"Higienópolis"(06),"Que Viva Glauber!"(91),"Guaraná, Olho de Gente"(82),"A Arvore da Fortuna"(92),"A Agonia do Mogno" (92), "Lina Bo Bardi"(93),"Davi contra Golias"(94), "O Brasil Grande e os Índios Gigantes"(95),"O Sangue da Terra"(83),"Arquitetura do Lugar"(2000),"Teatro Amazonas"(02),"Gráfica Utópica"(03), "O Sangue da Terra" (1983/84), "Guaraná, Olho de Gente" (1981-1982), "Via Láctea, Dialética - do Terceiro Mundo Para o Terceiro Milênio" (1981) entre outros. Saiba mais: "O Cinema da Retomada", Lucia Nagib-Editora 34, 2002. "Memórias Inapagáveis - Um olhar histórico no Acervo Videobrasil/ Unerasable Memories - A historic Look at the Videobrasil Collection"- Org.: Agustín Pérez Rubío. Ed. Sesc São Paulo: Videobrasil, SP, 2014, pág.: 140-151 by Cristiana Tejo.