quarta-feira, 31 de outubro de 2007

A BORBOLETA NO FILME




"Enviado por Carlos Alberto Mattos -
"(...) A Programadora Brasil está lançando novo pacote de DVDs com 53 títulos disponíveis para aquisição pelos associados. Entre eles, há 12 docs: de clássicos como Aruanda e Arraial do Cabo a títulos relativamente recentes como A Negação do Brasil. Alguns são autênticas raridades, como Ô Xente Pois Não, de Joaquim Assis, e Príncipe do Fogo, de Silvio Da-Rin.

A Programadora já conta com mais de 360 pontos de exibição associados (cineclubes, pontos de cultura, escolas, universidades e centros culturais), espalhados em 224 municípios de todos os 27 estados do país. Pena que o projeto, tocado pelo CTAV e a Cinemateca Brasileira, ainda não conseguiu se fazer conhecido como merece. Tente, por exemplo, conhecer os novos lançamentos no site oficial. Não vai conseguir. Assim como não logrei obter uma lista completa dos docs agora lançados.

Mas os cuidados editoriais são impecáveis. Cada DVD é acompanhado de um texto crítico sobre o(s) filme(s). Coube a esse docblogueiro fazer a apresentação de O Cineasta da Selva (1997), que recontou a história do pioneiro documentarista Silvino Santos. O filme de Aurélio Michiles foi editado junto com o curta Sangue e Suor: A Saga de Manaus. Reproduzo abaixo o meu texto:

A borboleta no filme

Ainda hoje os filmes de Silvino Santos (1886-1970) parecem bem mais que peças de um museu cinematográfico. Suas tomadas enchem os olhos pelos sentidos de movimento, ação, composição e detalhe. Cineasta do capitalismo caboclo nascente, cronista de índios, seringueiros, pescadores e grandes empresários, Silvino praticamente inaugurou, junto com o Major Tomaz Reis, o documentarismo etnográfico brasileiro. E também uma série de dilemas que o nosso cinema historicamente enfrentou junto aos poderes político e econômico.

Aurélio Michiles adotou uma perspectiva romântica para enfocar esse pioneiro em O Cineasta da Selva. José de Abreu encarna um Silvino meio fora do tempo, que fala trechos das memórias de seu personagem diretamente "para nós". O efeito ressalta a opção de Michiles por uma espécie de memorialismo lúdico, combinando rigor histórico e liberdade poética.
Uma cobra avança entre cachos de película, uma borboleta pousa num pedaço de filme. São imagens sintéticas que pretendem substituir grandes esforços de produção do filme de época. Da mesma forma, o uso gracioso de fotografias, mapas, transições de cor e incrustações digitais, além de um trabalho musical delicadíssimo e primoroso, tudo solicita do espectador uma atenção pelo menos tão lírica quanto histórica. A síntese acaba sendo a maior virtude desse filme que se lança ao desafio de retratar uma epopéia.

Por isso navegamos sem peso através de toda a carreira de Silvino Santos, no Brasil como em Portugal, com uma criteriosa seleção de trechos de seus filmes. E conhecemos do homem não apenas seu trabalho de desbravador, mas também um pouco de sua intimidade pessoal: a mitomania, a vocação para servir aos patrões, a aceitação tranqüila dos supostos desígnios do destino.

O Cineasta da Selva desenha uma pequena genealogia do cinema amazonense. A vida de seu maior pioneiro é revisitada pelo amazonense Michiles, um "herdeiro" de Silvino. Nele comparecem os conterrâneos Djalma Limongi Batista e Márcio Souza. A dedicatória, por sua vez, vai para o manauara Cosme Alves Netto, que tanto fez pela memória e a cinefilia no Brasil. (...)"

terça-feira, 30 de outubro de 2007

GODARD+GLAUBER=KYNEMA


Jean-Luc Godard um dos maiores expoentes da arte do século XX, declarou em 1964 que “aguardava com traquilidade o fim do cinema”. Enquanto que num outro continente outro jovem inquieto, Glauber Rocha (1939-1981) proclamava que fazer cinema contemporâneo bastava “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”.

Essas frases de efeito de algum modo sintetizam a modernidade do século XX, o cinema como referencia do que viria a refletir o “amanhã”, quer dizer, o “hoje” no planeta. O cinema não morreu, mas sim, uma forma de se fazer e comercializar o cinema.

O cinéfilo e refinado franco-suíço de origem social milionária já se entediava com o aborrecido comércio das imagens, enquanto que aquele outro jovem, mais otimista, nascido na classe média do sertão nordestino, num continente convulsionado por arcaicos problemas sociais, interpretava as mudanças do consumo das imagens através de uma tecnologia libertadora. A sofisticada tecnologia inventada e dominada pelos países ricos pudessem se tornar acessível às mãos e mentes dos países pobres. Resultado: 0X0.

Godard ainda aguarda com nervosismo o “fim do cinema”, enquanto que Glauber não conseguiu alcançar o século XXI, justamente quando as câmeras e todos seus apetrechos periféricos estão conectados ao sinal digital e de certa maneira realizando aquele sonho profetizado por ele – “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”. Cada um a sua maneira revolucionaram não apenas o cinema, mas um certo enquadramento do olhar sobre o século XX. Os dois, adeptos da imagem como suporte do discurso simbólico e reflexivo na dimensão da propaganda política.

Só a reprodução das imagens da realidade permite a confrontação do absolutamente diverso e longínquo, como fosse um museu do imaginário. O Hoje se impõe sobre um Ontem tardio e um Amanhã sombrio. Tudo isso transformado em imagens, guardadas em qualquer câmera-megapixels que se encontra nas mãos de um alguém ou na idéia de um outro. Tu mesmo. O Cinema não morreu e os seus melhores realizadores se transformaram em habitantes eternos destas imagens.

Resta-nos celebrarmos juntos o “teorema perdido” de Jean-Luc Godard e Glauber Rocha ao imaginário de Baudelaire:

“O culto das imagens. Minha grande, minha única paixão, minha primitiva paixão”.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Blog da cantora Eugenia de Mello e Castro


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Segunda-feira, 13 de Março de 2006

Queremos uma reedição!

O CINEASTA DA SELVA, Trilha sonora de Caíto Marcondes e Teco Cardoso
Press release: Inspirados por imagens estonteantes de uma Amazônia do começo do século, os músicos Caíto Marcondes e Teco Cardoso criaram a trilha sonora do filme "O Cineasta da Selva" (de Aurélio Michiles), longa - metragem que narra a saga do português Silvino Santos, um verdadeiro mito da selva e um dos pioneiros do cinema no Brasil. A textura sonora criada pela mistura de talking drums e paus de chuva com flautas de bambu e vozes, ganha uma nova dimensão mixada no envolvente sistema Dolby Surround.

As cantoras Marlui Miranda e Eugénia Melo e Castro acompanham Caíto e Teco nessa estimulante aventura, "dando vozes aos espíritos da mata e às reminiscências de Silvino".

Indicado para Prêmio Sharp 99 - Cat. Trilha Sonora.

Design Gráfico de Ruth Klotzel / Estúdio Infinito.

Primeiro CD brasileiro mixado em DOLBY SURROUND.

Temas: 01Abertura 02Sonho 03No Rastro do Eldorado 04Espíritos da Mata 05Rio Putumayo 06Casamento 07Pesca do Pirarucu 08Festa 09O Vôo 10Don Julio 11A Fiandeira 12No País das Amazonas 13Cavalhada 14Rio Antigo 15Colheita da Castanha & Decadência da Borracha 16Crônica

FICHA TÉCNICA- Caíto Marcondes - tablas, bongô, talking drum, bombo, caxixis, gongos, pratos, djambê, pandeiro, pandeirão, kalimba, cavaquinho, teclados e voz. Teco Cardoso - flauta em Dó, flauta em Sol, flautas indígenas de bambu, pífano, percussão com as chaves da flauta, sax soprano e sax tenor. Eugénia Melo e Castro - voz ( em "A Fiandeira" ). Marlui Miranda - voz e fala indígena.
Gravado no estúdio Oykoumenê mixado e masterizado em Dolby Surround em Junho de 98.

Crítica- "O selo Núcleo Contemporâneo está lançando a trilha sonora do filme "O Cineasta da Selva", reunindo os músicos Teco Cardoso e Caito Marcondes. O filme, dirigido por Aurélio Michilis, conta a história do português Silvino Santos que desde a sua chegada à Amazônia, em 1900, exercitou a vocação de fotógrafo e cineasta, tornando-se um dos pioneiros do cinema no Brasil. Este é o primeiro CD brasileiro mixado no sistema Dolby Surround, tecnologia que possibilita intensa sensação de envolvimento no ouvinte. Utilizando instrumentos de percussão e de sopro, os músicos conseguiram uma textura sonora que reflete com fidelidade os mistérios a região amazônica, seus sons gritos e tambores da mata. Flautas de bambu que se misturam com vozes, tablas que se unem aos paus da chuva, em canções que contam com a participação da cantora portuguesa Eugénia de Melo e Castro e da brasileira Marlui Miranda.Todas as músicas e arranjos são de Caito e Teco, que souberam dar vozes ao espírito da selva de forma irretocável."
José Prado Netto, Jornal do Sul de Minas, 05/5/1999

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

SANTIAGO F FOR FAKE


"documentário é diálogo"
Joris Ives


"Santiago", de João Moreira Salles (1). Eis um curioso filme documentário, ele nos empurra para questões profundas da vida tendo como interlocutor ou mestre de cerimônias uma personalidade singular. Neste sentido, a questão tão comentada, aquela que hoje os documentários não traz respostas e sim perguntas, indagações... aqui e neste caso, ele assume a ambiguidade com extrema radicalidade narrativa.

Creio que os docs sempre tiveram esse papel, provocador: nem perguntas e nem respostas. Mesmo quando estão a serviço de um objetivo político e ideológico.

Nos anos sessenta tivemos, aqui no Brasil, os documentários que ficaram conhecidos como “Caravana Farkas” (2), esses filmes tornou publico a realidade do Brasil profundo, desconhecido daquela época - o sertão nordestino. Cito também um outro caso, o filme "Um Homem com uma Câmera" (3) aí, por exemplo, o diretor a serviço da revolução soviética, faz enquadramentos inusitados (sobretudo pra época) e nos lança pedagogicamente numa viagem a querer repensar os padrões e ao mesmo tempo maravilhar-se com as novas possibilidades...O próprio título do filme nos faz pensar assim, o realizador empunha o seu instrumento de trabalho. A montagem vertiginosa dialoga com a narrativa não-linear.

O filme-documentário "Santiago", de João Moreira Salles tem um "quê" disto, ao desnudar os bastidores da produção, ele nos revela a intimidade das suas memórias sentimentais. Como estivesse nos empurrando numa jangada para o meio do oceano-memória. Numa espécie de tour através da ambientação arquitetônica, doméstica , familiar e sentimental que formam seu imaginário. E aqui le nos surpreende sob a arguta memória de um antigo empregado doméstico da sua família, o mordomo Santiago.

E aí ele desconstroi o documentário (autor e personagem). Num sentimento secreto querendo apropriar-se dele (João) e do personagem (Santiago). Os dois num só. Neste sentido não podemos esquecer a importância da montagem "escoreliana", tampouco da trilha, esta como personagem coadjuvante reflete-se nas idiossincrasias do
protagonista.

Diante do homem, o mordomo e o seu legado secreto, ficamos assistindo aquele embate entre o "Joãozinho e Santiago". O patrão e o empregado.
A cena do despertar do João, indo a sala, como encantado deparando-se com um pianista-mordomo vestido de fraque... e recebendo uma reposta pedagógica; entre tantas que deve ter tido deste mestre das ilusões. Não podemos esquecer que a cena das mãos, aliás filmada por sugestão do personagem, talvez seja uma das mais belas sequencias do filme. É aqui que nos cabe perguntar, quem é o “patrão” e o “empregado”?

A voz em falsete do verdadeiro João se contrapõe e impõem-se com a voz de barítono do falso João, mesmo assim, verdadeiro, porque é a voz do irmão (Fernando Moreira Salles), porquê tambem testemunha e cúmplice ocular desta memória sentimental F for Fake (4).

A vida neste documentário segue como tantas outras, um curso que tem esplendor e decadência, mas não aquela decadência financeira, e sim a própria vida se esvaindo, sem prantos, mas com a perplexidade bergmaniana. Enquanto que a fotografia em preto e branco, de Walter Carvalho, nos conduz magistralmente a esse templo-memória: “a casa dos Moreira Salles” e o “apartamento de Santiago”. Os planos quase que congelados de determinados ambientes da residência dos “Moreira Salles”, como estivesse guardada num álbum de fotografias, mesmo assim, não nos iludamos, não existe aí qualquer intenção nostálgica. Surge como uma centelha, um estalo, sempre para marcar um momento de auto- referencias.

Quando assisti Santiago, no cinema, junto com tantos outros espectadores, durante a sessão a sala permaneceu em silêncio, como num ritual entre iniciados, obsequiosamente ninguém deu um pio, ninguém riu ou cochichou comentários.

Santiago, de João Moreira Salles, é um excelente programa. Mesmo quando o diretor afirma explicitamente a sua influencia (neste documentário) ao filme “Viagem à Tóquio” do diretor japonês Yasujiro Ozu (1902-1963), num instante que confessa ter assistido este filme no desejo em utilizá-lo como linguagem conceitual neste documentário e para exemplificar escolheu uma sequencia do filme de Ozu, quando se estabelece o seguinte diálogo:

"- A vida não é uma decepção?"

"- Sim, ela é".


O diretor João Moreira Salles, aqui estaria se referindo ao seu personagem, o mordomo Santiago, ou a si mesmo? Nesta ambígua cena em questão, tenhamos a clareza em considerar que ele vira a página da história dos documentários brasileiros, transpassa as fronteiras, consequentemente acreditamos que o filme-documentário “Santiago” encontra-se muito mais para os efeitos ardilosos de um “F for Fake” do quê para o filme de Ozu.

Torna-se interessante notar que, a montagem funciona como um instrumento infalível, cuja manipulação revela um diretor lidando a encenação no set de filmagem como um ilusionista fotográfico. Tudo porque como a própria armadilha que nos arma a nossa memória, quando tentamos contar um fato e a ele acrescentamos uma nova interpretação, sem querer descaracterizá-lo, segue a tradição daquela máxima popular: “quem conta um conto, aumenta um ponto.”
Verdade ou Mentira: João Moreira Salles desconhecia Santiago como este conhecia o Joãozinho? Aí está o enigma que levou 15 anos para ser digerido, o tempo entre as filmagens e esta versão definitiva.

Nestes tempos de celebridades e abelhudamente possessivo da vida alheia, o filme-documentário “Santiago” caiu nas graças do público, afinal ele, como apenas nove copias já foi assistido por mais de 25 mil espectadores. Nada mal para um filme documentário sobre um personagem desconhecido do grande publico.

Aurélio Michiles, 29.8.2007.

Notas:
1 Santiago, dir. João Moreira Salles, Brasil, 2007. 79 min.
2. “Caravana Farkas” é a denominação dada a uma série de filmes documentários produzidos no Nordeste entre 1968 e 1970 por um grupo de cineastas paulistas, liderados pelo fotografo, diretor, empresário e produtor Thomaz Farkas.
3. Um homem com uma câmera (Chelovek s Kinoapparatom), dir. Dziga Vertov, Rússia, 1929, 65 min.
4. Verdades e Mentiras (F for Fake), dir. Orson Welles, EUA. 1973, 86 min.

TROPA DE ELITE E O RECRUTA ZERO


Na sexta-feira, dia 5 de outubro, fui assistir ao filme "Tropa de Elite", de José Padilha; antes mesmo do seu lançamento já havia se transformado num fenômeno de massas. Aqui não pretendo fazer-lhe uma análise crítica, mas sinto-me motivado a uma espécie de relato sobre o seu impacto no cenário da produção cinematográfica brasileira e o que isto significa como metáfora sobre a nossa contemporaneidade e mais uma quebra de paradigmas contra aquela visão (com razão) da policia como inimiga da sociedade.

Como já afirmei, fiz o ritual do bom cidadão, paguei o ingresso e junto com outras tantas pessoas sentei-me na poltrona para finalmente conferir mais um filme brasileiro, aquele que nos últimos tempos rompeu a fronteira do privado e do coletivo, do legal e do ilegal, da "elite" (op's!) e do popular. Explico-me na semana passada a Alessandra, a moça que trabalha em minha casa, comentou que havia comprado por "cinco reais" uma cópia no calçadão, mas ela sequer qualificou-o como "pirata", apenas disse que havia comprado, como quem comenta que fez compras na "fnac", por exemplo. E, ela como sabe do meu interesse sobre cinema ofereceu-me emprestada.

Não deu tempo, no dia seguinte, sexta-feira, não consegui segurar a curiosidade.E aí está o filme, correndo de boca em boca, massageando a visibilidade da nossa produção cinematográfica, desde qualidade da produção até na distribuição. Ora, distribuição em nosso país é um tabu, como todos sabem por aqui pouco se divide daí as consequencias que causou a existência desta história "Tropa de Elite". A distribuição de riqueza, seja ela de origem econômica, política, social ou cultural tem sido feita na marra. A "elite" tem dado o seu "jeitinho" corrompendo e aliando-se com as forças ilegais. Determinados políticos fizeram desta relação uma tradição, eles são "produzidos", "financiados" pelos "bicheiros", "donos de bingos e jogos eletrônicos", "narcotraficantes" e por aí vai.

O poder policial contaminado, faz eco protegendo a promiscuidade destas relações, diante da "galera" eles se exibem como hierárquico e contundentes, criam personagem e ações espetaculares. Nos anos 60/70 exibiam-se como os "homens de ouro" e estes logo depois ou ao mesmo tempo, se mostraram implacáveis homens do "esquadrão da morte", torturadores de cidadãos comuns e dos prisioneiros políticos.

Todos eles, acima da lei, inclusive criaram uma para se protegerem - a lei Fleury.

O morro - as 600 favelas cariocas - é aonde se encontram os moradores urbanos à margem da sociedade. E elas surgiram justamente para abrigar a massa de soldados que foram combater Antonio Conselheiro e seus seguidores, quando o massacre acabou eles retornaram para a Capital Federal com a promessa de receberem a justa e prometida recompensa do Estado. Enquanto a mesma não vinha, eles foram ficando...ficando... Até fazerem deste local um privilegiado ponto estratégico para vigiar a cidade "legal". Diante da avalanche dos confrontos armados à sociedade timidamente foi reagindo, o governo criando grupos táticos para combatê-los e a sociedade na expectativa para compreender o "por que" da sua existência.

A favela sempre foi romantizada (literatura, música e telenovela) como um lugar que mistura alegria, miséria e peculiaridades - Favela dos meus amores, Orfeu da Conceição, Rio Zona Norte, Rio 40 graus, O Assalto ao trem pagador, outros. Mas quando, em 2003, foi exibido o filme "Cidade de Deus", causou perplexidade, compaixão e análises acadêmicas. Este filme de Fernando Meirelles pedagogicamente contava a historia desde a origem à profissionalização de um grupo armado relacionado ao tráfico de drogas.


Uma curiosidade entre os dois filmes Cidade de Deus e Tropa de Elite, este conta com alguns dos mesmos profissionais daquela primeira produção, destacam-se o co-roteirista (Bráulio Mantovani) e o montador (Daniel Rezende). Nesta versão definitiva o filme Tropa de Elite se pode identificar o trabalho do Bráulio.

Caso o filme Cidade de Deus, de certa maneira, mostre para classe media a vida íntima daquela população que "a ameaça", este outro, a "Tropa de Elite" nos revela a vida íntima no interior de uma guarnição militar (BOPE - treinado para combater com tática e estratégia de guerrilha urbana). Este grupo se destaca daí auto denominar-se "elite", do geral da tropa da Policia Militar, aquela que deveria nos proteger contra a violência numa cidade aonde os números de vítimas se somam a uma guerra.

Mas ao refletir dramaticamente sobre essa guarnição, o filme de Padilha abre as entranhas dos policiais militares, suas relações promíscuas, corruptas e corrosivas. Recorrendo ao modelo dos filmes de ação roliudiano, o bem contra o mal, o mocinho (Capitão Nascimento, Wagner Moura) em conflito entre o dever e a sua vida pessoal familiar (a esposa e um bebê recém nascido). Um novato (Neto, Caio Junqueira) com cara de anjo desprotegido, gritando "mamãe!", o personagem com cara de estudioso e esforçado (André Ramiro, André Matias), ele deseja sair dessa para melhor socialmente, através dos estudos. Existem interesses contrários naquela micro-paisagem social brasileira - a universidade particular. Para se proteger o estudante esconde a sua profissão de policial, sim, porque polícia significa "sujeira", um paradoxo.

Entre mocinhos, bem intencionados e bandidos a vida carioca se desenha numa tragédia.

O filme abriu uma discussão apaixonada, e por isso mesmo cega sobre o tema. A leviandade de opiniões acabou por definir uma fronteira entre "intelectuais" e o "popular". Aqueles acusam Padilha de incorrer numa fascistização da violência declarada, celebrando a tortura. Ora, todos sabem que no cinema norte-americano, os grandes e consagrados diretores recorrem ao banho de sangue, a tortura física e psicológica para revelar as relações de corrupção entre a polícia e bandidos, corruptos e corruptores, podemos citar como exemplo: a saga dos Corleones "O Poderoso Chefão" (Coppola), Sam Peckinpah (Meu Ódio será tua herança, 1969; Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia, 1974; Elite de Assassinos, 1975). Este diretor nos anos setenta era acusado de fazer filmes que banalizava a violência. Brian de Palma (Scarface,1973; Os intocáveis,1987), Martin Scorcese (Táxi Driver,1976; Os Bons Companheiros,1990;Gangues de Nova York,2001), Tarantino e o seu cinema que carnavaliza o sangue e a violência (Cães de Aluguel,1992;Pulp Fiction,1994;Kil Bill,2003) entre outros.

No Brasil apesar da violência fazer parte do nosso cotidiano, a toleramos e negamos discuti-la como uma anomalia das relações sociais (o mito do "homem cordial", "democracia racial"). Vale lembrar que o cinema brasileiro sempre recorreu à temática do cangaço para refletir essa violência latente em nosso país, desde “O Cangaceiro”,1954) de Lima Barreto aos filmes de Glauber Rocha. Os personagens de "Lampião, Corisco, e Maria Bonita" de algum modo são explorados dramaticamente do ponto de vista da ambiguidade, numa mistura de bandido e herói.
No filme Tropa de Elite, o chefe dos bandidos, chama-se "Baiano" (Fábio Lago), o que indica que tem origem nordestina. Eis, uma outra metáfora no filme. Enquanto que os "bandidos" chamam os policias de "os alemão".

O CINISMO DE ABU-GHRAIB

Nos tempos de "cinismo" fica difícil falar na existência das diferenças entre violências, aquela a serviço de um futuro promissor, libertário e aquela outra exercida para dominar, colonizar e transformar pessoas e países submetidos aos interesses dos conquistadores; exercida com seu desprezo absoluto pelos valores humanos, pela cultura (própria e dos outros) e pelo passado são, provavelmente, a razão principal do surgimento desse preconceito contra o filme, como mostra claramente a história do povo brasileiro. Tudo isso, aliás, hiperbolicamente não é muito distante nem muito diferente dos fascistas religiosos, e na verdade faz parte, de forma mais ampla, do fundamentalismo intolerante que ameaça o mundo na era Bush; refiro-me aquelas cenas de tortura na prisão de Abu-Ghraib, elas lançaram um novo olhar sobre a pretensa superioridade moral americana. Aqueles soldados (a) norte americanos exibindo-se diante das câmeras como soberbos torturadores, verdadeiros astros e estrelas num filme de ficção, eles mocinhos e que no final serão celebrados como heróis, daí o exibicionismo narcisico seviciando seus prisioneiros como animais circenses.

Diante do cinismo hipócrita a tortura, nos dias de hoje, é conceito generalizado, sem diferenças e qualificações. Todas as pessoas que passaram por esse martírio, são colocadas numa taboa rasa, desde aqueles que lutaram contra a ditadura e que foram presos, desaparecidos, exilados, torturados, assassinados aos presos comuns.

Nesta mesma arquitetura de indiferenças, confabulações contraditórias e esdrúxulas que se cria o sofisma para dizer que a morte de Che Guevara, assassinado por mando dos interesses da Guerra Fria, tem a mesma importância que as motivações de transformação social, idéias estas, pelas quais levou seus algozes a assassiná-lo.

Vendo o filme Tropa de Elite e acompanhar aqueles indivíduos bem intencionados sendo treinados para zerar a sua autoestima em nome de uma espécie de sociedade secreta ("caveira"), chamados de "numero dois", "numero três" ou....Ocorreu-me lembrar daquele personagem das historias em quadrinhos, e que me fez dá boas gargalhadas na infância letrada, refiro-me ao "Recruta Zero" - soldado irresponsável e preguiçoso, mas bem-humorado. Criado como uma reação à convocação de um jovem estudante para lutar na Guerra da Coréia (1950-1953), o Recruta Zero passa seus dias no quartel a ter que aguentar as broncas do Sargento Tainha, este querendo a todo custo impor a sua autoridade e aquele o desobedecendo, por tanto o desautorizando.
"HORROR!" "HORROR!"

Neste jogo aprendemos que podemos suportar com certa artimanha determinados princípios da intolerância, mas tem um limite, neste caso dentro da carpintaria dramatúrgica num “gran finale”, mesmo que subjetivamente nós sejamos o alvo (culpados?). E aqui me refiro ao final do filme "Tropa de Elite" e que neste caso o personagem (André) apenas está nos mostrando a nossa esquizofrênica imagem no espelho da realidade.

E como ironia coincidente, aceito-a como mais uma das metáforas, no último festival de cinema do Rio de Janeiro em que "Tropa de Elite" abriu a temporada, ao final quem levou o prêmio de melhor documentário foi o filme "Condor" (de Roberto Mader) justamente sobre as forças intolerantes do "cone sul" organizadas oficialmente e internacionalmente ("esquadrões da morte") para eliminar fisicamente todos os oposicionistas aos regimes ditatoriais que fazia moda naqueles anos setenta, no Cone Sul (Brasil, Uruguai, Chile, Argentina e Paraguai) quando, segundo cálculos não ortodoxos, devido à Operação Condor, mais de 400 mil pessoas foram presas e 4 milhões exiladas.

Tropa de Elite, o filme, seja bem-vindo! Ribomba na minha cabeça aquela inesquecível e impressionante imagem do filme "Apocalipse Now" (adaptação livre de "O coração das trevas", JosephConrad), o coronel Kurtz, balbuciando "Horror!" "Horror!". Até hoje ninguem acusou o ator Marlon Brando ou o cineasta Francis Ford Coppola de fascistas e ou apologistas da violência.

Aurélio Michiles, outubro 2007.

"Livre-pensar é só pensar" Millor Fernandes

www.tudoporamoraocinema.com.br

Minha foto
Nasceu em Manaus-AM. Cursou o Instituto de Artes e Arquitetura-UnB(73). Artes Cênicas - Parque Lage,RJ(77/78). Trabalha há mais de vinte anos em projetos autorais,dirigindo filmes documentários:"SEGREDOS DO PUTUMAYO" 2020 (em processo); "Tudo Por Amor Ao Cinema" (2014),"O Cineasta da Selva"(97),"Via Látex, brasiliensis"(2013), "Encontro dos Sabores-no Rio Negro"(08),"Higienópolis"(06),"Que Viva Glauber!"(91),"Guaraná, Olho de Gente"(82),"A Arvore da Fortuna"(92),"A Agonia do Mogno" (92), "Lina Bo Bardi"(93),"Davi contra Golias"(94), "O Brasil Grande e os Índios Gigantes"(95),"O Sangue da Terra"(83),"Arquitetura do Lugar"(2000),"Teatro Amazonas"(02),"Gráfica Utópica"(03), "O Sangue da Terra" (1983/84), "Guaraná, Olho de Gente" (1981-1982), "Via Láctea, Dialética - do Terceiro Mundo Para o Terceiro Milênio" (1981) entre outros. Saiba mais: "O Cinema da Retomada", Lucia Nagib-Editora 34, 2002. "Memórias Inapagáveis - Um olhar histórico no Acervo Videobrasil/ Unerasable Memories - A historic Look at the Videobrasil Collection"- Org.: Agustín Pérez Rubío. Ed. Sesc São Paulo: Videobrasil, SP, 2014, pág.: 140-151 by Cristiana Tejo.